30.10.07

 
Janela

Inspirado no filme “Jogo de cena” do Eduardo Coutinho

Resolvi abrir a janela de novo.

Até então o quarto estava do jeitinho que ele deixou. Nunca mudei nada. Mas aí um dia eu sonhei com ele no corredor do hospital, e ele me disse “mãe, não precisa mais sofrer, eu tô bem, eu tô bem”. Parecia tão real que era como se ele estivesse na minha frente aqui agora. Nesse dia virei pra minha filha e falei: “as coisas vão mudar aqui em casa”.

Decidi deixar a luz entrar.

Eu, que não vivia nem pra mim, agora vivo em função da minha filha. Porque aquela minha vida não era vida, não. Enraizada em casa como árvore decepada no meio da sala? Sabe, Deus é bom. Quer dizer, comigo Ele não foi bom, não, mas é bom. Fico olhando pro céu e hoje percebo como um dia pode ser bonito. Aí, enxugo as lágrimas, levanto a cabeça e por alguns segundos até esqueço de tudo o que passou.

De quase tudo o que passou.

23.10.07

 
Amostra da mostra


No escuro desta sala meu mundo se ilumina.

Minha vida, cujo roteiro não daria nem um comercial de quinze segundos, encontra duração e direção nesses 461 filmes que a preenchem com histórias que nunca vivi, mas ganham projeção em mim.

Cada duas horas de filme servem como uma terapia em que converso com atores mais reais do que meus pseudo-amigos que estão sempre representando.

Mais do que aos seus personagens, os diretores me guiam para o único mundo no qual eu queria viver: o que não é meu.

Por isso, para mim essas fantasias são mais reais do que meu cotidiano de curta metragem e contra-regra.

Mesmo os de baixo orçamento arrecadam em mim fábulas de emotividade no desastroso choque entre a minha rotina tão sem emoção e essas centenas de mentiras reais.

No final, o preço que pago por sessão apaga um pouco o fracasso de público e de crítica dessa minha vida tão ruim de assistir.

16.10.07

 
“Doce de sal”

Da música “Cruel” do Sérgio Sampaio

Isso que fiz não foi nada.

Cruel mesmo foi amargar a alma que docilmente havia lhe entregue embalada em fitas de bem-casados.

Depois de caramelizar-me tanto nas suas promessas desmedidas, acabei perdendo o ponto.

O que era frescor e vivacidade ganhou o gosto amargo do rancor requentado.

A paixão, antes só calores e odores, hoje é pedra de bolor.

Dos doces encantos das nossas memórias só ficou o fel do ressentimento queimado e incrustado nesse corpo que não se deixa mais limpar.

A esperança tão bem confeitada apodreceu nessas ilusões cozidas em banho-maria.

Minhas lágrimas em calda nada açucarada viraram a cobertura perfeita pro seu escárnio derretido.

Por isso, se hoje lhe tiro o sal da vida, foi porque azedou tudo de doce que havia nela.

9.10.07

 
“Cai no areal e na hora adversa”

Fernando Pessoa

As nuvens negras que cobrem o céu são o reflexo simétrico do fosso que fará o chão lhe faltar aos pés.

Nessa sina sem sinal, cairá de joelhos ante o inimigo a quem um dia se ombreara e hoje lhe pisa a cabeça para que chafurde ainda mais na lama.

Afundado, se acostumará com a grandeza da sua pequenez.

Naufragando quanto mais se agita, desistirá de tentar o intentável.

Parado, não esperará socorro de amigos que não há ou de inimigos que hão de sobrar-lhe.

Faltando algumas horas para partir, perguntará a si mesmo onde errou, mas os erros serão tantos que o deixarão tonto de tanto pensar e penar.

Sem descobrir nem por que veio a este mundo, ficará surpreso com a ânsia que sentirá em sair dele.

2.10.07

 
Cartão de crédito

Meu cartão de crédito pode tudo.

Pode dar crédito e honra a um ser tão desonrado e desacreditado como eu.

Pode adquirir produtos, serviços, favores e até pessoas como quem compra uma bala (e depois a chupa, cospe e joga fora).

Pode transformar o mundo todo num infinito shopping para, se eu quiser, dar a Europa para você, a América para aquele, a Ásia para ti, a África para nós e, de brinde, a Oceania de troco.

Pode fazer tudo girar em torno de um crédito rotativo aromatizado pelo sopro roto do meu arroto.

Pode me levar a lugares tão paradisíacos que nessas viagens meu ego vai inflar tanto que acabará não cabendo mais em mim ou em qualquer lugar público ou púbico.

Pode financiar um outro mim, pois este eu já não vale quanto pesa ou quanto lesa o povo.

Pode me trazer a felicidade, ainda que seja embrulhada no rancor, com o laço vermelho do ódio e a na caixa sem fundo da soberba.

Meu cartão de crédito fode tudo.

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