31.10.14

 
Testamento


Ao mendigo da esquina que não vi mais gordo, porque nunca esteve gordo, e que nunca sequer vi de verdade, deixo esta vista farta.

Ao cego que me cegava ao comer com extrema felicidade tudo o que não via pela frente, deixo minha saciedade cansada de querer ver o invisível.

Ao ascensorista de costas curvadas e desejos deprimidos depois de tantos altos e baixos, deixo minha plena planície e esperanças rastejantes.

Ao padeiro e seus eternos sonhos da noite passada e requentada, deixo pesadelos salgados nas lágrimas de sonos insones.

Ao coveiro que polvilha a pá de cal sobre os nossos mortos como quem oregana uma pizza, deixo de gorjeta a morte e seu amargo retrogosto.

Ao motorista que insiste em me colocar todos os dias no mesmo coletivo, deixo minha individualidade louca de ser apenas um sósia só de mim.

E ao filho do meu pai, que nunca pude chamar de irmão, deixo este boletim de ocorrência por ameaça de morte e a certeza de que, se eu for, que ele herde de mim esta única herança.

30.10.14

 
Rosa dos ventos 


Cata-vento
cospe tornado
arrota brisa
peida purpurina
e asma o que ama.



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