28.11.06

 
O silêncio é a gente mesmo demais

“O senhor sabe o que silêncio é? É a gente mesmo, demais”.
Guimarães Rosa



Eu queria falar outras coisas.

Não o que seus ouvidos querem ouvir.

Mas o que os meus têm medo de escutar.

O que, ouvido, fica na memória sem nenhuma tecla pra apagar.

O que, sentido, grava-se na pele e pode ser lido em braile.

O que, pressentido, pré-senta-se na cadeira de morte.

O que, ressentido, bile mágoas e magoa-me.

O que, aceito, não se receita.

O que, feito, destrói a si mesmo.

O que, ensimesmado, não cabe em si mesmo.

O que, de mais a mais, é sempre menos.

O que, ademais, é demais.

O que me minora cada vez mais.

O que aumenta o vazio que me esvazia por completo.

O que de mim é meu eu mais puro.

Um eu que grita silêncios.

E emudece gritos.

E umedece ritos.

E descem rios.

De mim.

Por isso, silencio.

22.11.06

 
Feriados


Feriados foram feitos pra esquecer.

Esquecer que a vida é inútil nesses dias tão úteis quanto fúteis.

Que o trabalho trabalha contra nós e nos torna escravos de nós mesmos.

Que o pagamento no fim do mês não cobre dívidas e dúvidas.

Feriados ferem essa casca que alguns ainda acham que é corpo e não sentem o cheiro desse fruto podre por dentro.

Feriados são manadas de coitados que se aprazem em sofrer em trânsitos engarrafados nas lesmantes horas que distam o tormento do paraíso.

Feriados são seres que esperançam uma vida maior do que essa rota rotina sem rota.

Feriados diminuem o PIB, mas aumentam o bip de corações quase enfartados.

Feriados fabricam emoções que ficam na memória mais do que qualquer memorando.

Feriados firmam funcionários que as firmas acham que fazem corpo mole.

Feriados são poucos diante de tantos agostos e desgostos.

Feriados são miniférias nessa vida em que a féria não compensa a besta-fera.

14.11.06

 
Brasília


O que pode o meu poder?

Pode tudo. Pode transformar a lei de diretrizes orçamentárias em lei de meretrizes ordinárias que nenhuma CPI vai revelar a “comissão” que acontece por baixo do pano nessa comissão que brilha na mídia, mas chafurda na merda.

Pode controlar esse país sem pais e sem babás e mostrar que é baba politicar dando tapinhas nas costas e escorrendo veneno nas babas do fogo amigo.

Pode gerir ingerências, incongruências e indecências jamais vistas ou imaginadas, pois não há cláusulas de barreiras que impeçam a usura tão usual nessas usurpações que fazem todo veto virar um voto torto.

Pode mostrar que a cada segundo acontece um mensalão e que não há medida provisória que meça a infinita extensão dessa corrupção que descobre a nação desde o descobrimento.

O que deve o meu poder?

Deve algo que a imprensa finge denunciar inventando escândalos e dossiês nada dóceis, mas que não amargam minha vida.

Deve enriquecer-me acima de tudo.

E mostrar que quem deve não treme.

10.11.06

 
Rio

Te espero nas pedras do Arpoador.

Sentado, fico admirando esta cidade tão bossanovamente que daqui fica fácil entender por que a bossa nova nasceu no Rio e não em outro lugar.

Mas embora o “O barquinho vai”, “a tardinha cai” na minha cabeça num choque de realidade tão cruel que “desmaia o sol”.

E faz as luzes do morro do Vidigal vagalumearem e me lembrarem que esse “dia de luz”, cheio de casalzinhos de mãos dadas, compradas ou alienadas, pode acabar em trevas muitos distantes dessa “festa de sol”.

Afinal, se “tudo é verão e o amor se faz”, seu coração-gelo, com ou “sem intenção”, não acompanha o calor todo que eu sinto dentro do peito e que vai me corroendo mais do que bala perdida.

“É a vontade de cantar” que eu não tenho.

Os “dias tão azuis” nocauteados pela “luz negra de um destino cruel”.

E o meu corpo “que desliza sem parar” em direção a um mar muito agitado, mas que um salva-vidas distraído com a beleza do Rio certamente não verá.

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