27.11.10

 
“Dos seios de ‘Juliana’ ainda jorram leite”*


Sugado um dia por (talvez) um futuro craque.
Craque?
Mesmo abandonado pela mãe em troca de uma pedra?
Não.
Crack.
Crack?
Também não.
Ela não tinha mais o crack dentro de si.
Apesar de tê-lo nos pensamentos, nos gestos, na tremedeira, na nóia, na mania de andar olhando pra baixo sem jamais ver o sol que agora é só chão, chão, chão, chão, mas cadê, cadê, cadê o crack? Cadê meu crack?
Ela, que exalava crack pelo leite, pelo mijo, pelos poros-poucos-sonhos, por tudo e agora tava sem e sempre precisa e sempre quer mais, mas cadê, cadê, cadê?!
E se prostitue por 10 ou 20 reais e faz seis programas por dia e troca por crack e se troca por crack e apanha do pai do filho e não dorme e sustenta o vício dos outros, mesmo mal podendo com o seu.
Como pode?
Como pode ouvir a pedra falando: “Você não se ajoelha nem para Deus vai se ajoelhar pra mim?”
Que resposta dar pra pedra no meio do caminho?


* A partir de matéria da Eliane Trindade (Folha de S. Paulo de 21.11.2010).

24.11.10

 
Minifato XVIII
(a realidade goleando a ficção)

A pessoa que inspirou o miniconto “Megaplégica” não pisca o olho. Ela só movimenta os olhos na direção das letras da palavra que quer formar. Mais uma vez a realidade ganhou.

18.11.10

 
Leviatã pra viagem


─ Esse aí é 10; mas você não quer o modelo básico.
─ Como sabe?
─ Com o tempo, passei a sacar os gostos dos clientes. O mais barato é o que menos vende.
─ Por quê?
─ As pessoas NÃO querem uma destruiçãozinha básica. Ninguém aguenta mais bala perdida, criança de rua, político corrupto, país em crise, morte por câncer... Essas coisas. Tá todo mundo cansado da sua cota de cotidiano. Dessa vidinha medonha de enfadonha. Querem algo bem maior do que danos ou traumas.
─ Quais são os que mais saem então?
─ Aqueles ali começam com mil; os do lado, mais completos, já vão pra dez mil. Tem os de cem mil. Mas a brincadeira boa mesmo começa com um milhão.
─ E esse faz o quê?
─ Quase tudo que você tá querendo.
─ E o que eu tô querendo?
─ Você é do tipo que quer muito mais. Tá com cara de quem veio atrás daquele. O principal. O único. O que ninguém comprou até hoje. O que tá esperando “O Comprador” há muitos anos. O que vai fazer com que não sobre NADA.
─ Interessante...
─ Mas não é você, né?

12.11.10

 
A sombra da minha sombra


Queria me eclipsar em você.

Sabe esses eclipses ultrararos que acontecem só de milênios em milênios? Desses daí. Estaríamos juntos muito mais do que agora pelo simples fato de que seríamos um só corpo em perfeita conjunção astral.

Somaríamos nossas luzes ─ a sua bem-muito maior, é claro ─ e formaríamos um clarão tão galaxialmente branco que iluminaria tudo o que estivesse a anos luz de distância à nossa volta. Seus feixes-tiros rasgariam a noite fuzilando todos os que nos transladam com sua mediocridade opaca. Sua desconfiança sombria. Sua inveja negra.

Ao contrário dos outros, nosso fenômeno duraria pra sempre, fazendo vir à luz temores que, uma vez revelados, tremeriam eles de nós. Descobertos do breu que houvéramos sido, perderíamos a razão e daríamos à luz a sonhos prenhes da energia do que geramos de melhor.

Mas, justamente por tudo isso, seu brilho me cega.

Acho melhor sair e apagar a luz.

2.11.10

 
Finados


Dormir relembrando
Acordar mal
Tomar café
Beber mais café
Sair de casa
Ligar o carro
Desligar o rádio do carro
Pegar trânsito
Lembrar da morte
Chegar ao cemitério
Esperar pra entrar
Dar seta pra entrar
Entrar no cemitério
Parar na floricultura
Escolher as flores
Pegar as flores
Pagar as flores
Chegar à quadra do jazigo
Sair do carro
Caminhar até o jazigo
Lembrar do hospital
Deixar as flores sobre a lápide
Pegar os potes de água
Ver baratas correndo
Chorar
Lembrar da funerária
Ir à torneira
Encher os potes de água
Voltar ao jazigo
Molhar as flores
Lembrar do cara da funerária comendo coxinha no boteco
Limpar as placas com os nomes da família
Colocar os potes no lugar
Lembrar do IML
Passar a mão na terra e nos nomes
Fazer o sinal da cruz
Rezar
Lembrar do velório
Chorar mais
Olhar as sepulturas vizinhas
Ver nomes e datas
Lembrar do enterro
Notar outras pessoas no mesmo ritual
Não se conformar com nomes e datas
Olhar o sol brilhando
Lembrar da missa de 7° Dia
Sair do cemitério
Pegar trânsito
Esquecer o dia de hoje
Lembrar da vida

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