31.3.09

 
Aumento


Pronto.

Você passa 12 horas por dia se enfartando de trabalhar, rindo das piadinhas sem graça de um desgraçado, puxando saco, engolindo sapo e fazendo hora extra sem ganhar e vem o filho da puta de um presidente dizer que não é hora de pedir aumento?

O que ele sabe da minha vida? Aliás, isso é vida? Ficar economizando pro salário não acabar no meio do mês, caindo nos juros sem fundo de cheques nada especiais, rolando uma dívida pra pagar outra?

Não, ele não sabe. Não sabe o perrengue que é fazer um frango assado dar pra três dias, a cara de tristeza das crianças vendo o carrinho de supermercado da frente cheios de doces e o nosso sem nada e tendo que usar tênis furado porque a gente não tem grana pra outro.

E aí justo no dia em que você vai pedir aumento vem o infeliz e fala isso. Um cara do Partido dos Trabalhadores. Só se for dos trabalhadores da Suíça.

Mas, quer saber? Não aguento mais. De hoje não passa. Ou esse porra me dá aumento ou eu vou...

─ Queria falar alguma coisa comigo?

24.3.09

 
O mundinho pequeníssimo do sr. Ínfimo

“A vida é curta para ser pequena”
Chacal



Acordava sempiternamente às 7h55, fazia 4’59” de alongamento e às 8h levantava com o pé direito; pra garantir outro dia de sorte.

Café da manhã era as 3 bolachas de água e sal e uma xícara de café com 2 gotas e meia de adoçante.

Escrevia três páginas de “A história concisa do mundo”, mastodôntica empreitada literária, já na sua 11.459ª página.

Almoço era as 3 folhas de alface (postas à esquerda do prato), 5 colheres de arroz (no centro) e um gomo (à direita) de linguiça; carne que preferia, pois dispensava sal, temperos e saía sempre igual.

Dormia por 49 minutos, usando outros 11 para escovar os dentes, lavar as mãos e quaisquer idéias que lhe desviassem de sua gloriosa missão.

Escrevia mais três páginas de “A história concisa do mundo”.

Banho, às 22h e em 5 minutos (9 se era o sábado mensal reservado aos seus prazeres).

Conferia o alarme do relógio e, às 23h, deitava pensando no que pediria pra porem em seu epitáfio.

16.3.09

 
Os suicidas hereditários


Quando o primeiro se matou, todos da família acharam que o mundo tinha acabado.

O suicídio, até então só visto nos jornais, se fez presente com um peso insuportável pairando sobre eles.

Quando as lágrimas estavam quase secando por não ter mais de onde jorrar, outro repetiu o gesto.

Descobriram que o mundo podia acabar de novo. A comoção e os presentes ao enterro foram bem maiores. Todos com os seus “são-coisas-da-vida(?);-tenham-fé-que...”.

Mas, não. Eles não tinham fé. E nem o terceiro, que não suportou a perda dos dois.

Saiu na tevê. Uma multidão acompanhou o enterro. Todos com os seus “vocês-vão-superar...”.

Na família, só o silêncio. Pensamento era só um: na palavra proibida. Desconfiavam de si. Receavam que outro quebrasse o pacto de não fazer.

E mais um fez. Com igual repercussão, mas bem menos pessoas. Agora sem nada a dizer. O povo temia que isso fosse contagioso.

E era. O quinto se foi.

Só sobrou um, que não quis morrer antes de levar a saga da família adiante.

12.3.09

 
Minifato VII
(a realidade goleando a ficção)


Morreu o brasileiro que estava com dois corações.
Sobreviveu só uma semana com eles.

10.3.09

 
Ex-comunhão


Não abortarás, ainda que o feto nasça do desafeto de um padrasto bastardo no ventre de vento de uma criança.

Porque a lei de Deus está muito acima da lei dos homens, e mais vale um estuprador arrependido do que médicos sem sina na medicina.

Excomungados, vereis que a hóstia que ostentáveis será vomitada e todas as vidas que tiverdes salvo não mais darão a vós o salvo-conduto para o céu.

Porque lá não estão os que desafiam os dogmas da igreja e agem sem as algemas da fé.

Lá não estão os que curtem os cultos, mas jogam nossa doutrina na latrina.

Muito menos os que zombam do meu discurso e o chamam de “reles-gião”.

Ou ainda aqueles que entrem os sermões da missa preferem ficar com os senões da massa.

Todos, sem exceção, arderão nas chamas do inferno, onde não podereis abortar o sofrimento que a justiça divina vos impingirá.

2.3.09

 
O complexo caminho das lágrimas


Durante toda a crise, por infinitas vezes quase chorou.

E ficava intrigado pensando por que, apesar de sentir vontade e de ter todas as razões para fazê-lo, nunca derramara uma lágrima.

Hoje, depois de ter superado as dificuldades, lembrou-se disso e, sem nenhum motivo aparente, começou a chorar.

Talvez pela ingênua esperança de que nunca mais irá quase chorar de novo.

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