26.2.08
Uma fábula dos nossos tempos
Aí, lembrou-se dos valiosos ensinamentos e pensou com força, mas com tanta força, que...
Coincidência ou não, o animal parou, olhou pra trás e acenando contrariado disse:
─ Peraí! Eu sou jumento, mas não sou burro!
─ O quê???
─ É isso mesmo. Porque você fica lendo esses livrinhos de primário e pensa que acha que sabe de alguma coisa.
─ ...
─ Sim, porque segundo Kierkegaard...
─ Que o quê?
─ Ai, ai, ai... KI-ER-KE-GA-ARD! Segundo ele a humanidade está inerentemente condenada à queda e ao fracasso, dos quais só pode deixar de sucumbir “separando-se da oferta da razão” e atingindo o “salto qualitativo”, que precede um novo estado de possibilidades e angústias, no qual “pecado e graça estão paradoxalmente unidos”.
─ Ah, tá...
─ Bom que tenha entendido.
─ Acho que sim.
─ Agora, enquanto compro fraldas pra você, ponha a sela e o cabresto.
─ Por quê?
─ Porque cansei de fingir que não domo seu destino.
16.2.08
Pra que uma hora a mais se a vida está sempre a menos?
11.2.08
Inspirado no filme “Carne Trêmula”, do Almodóvar
Meu horizonte acaba na meia volta que meus braços dão nesta cadeira de rodas.
Condenado eternamente a olhar pra baixo, esqueci da cor do céu e do gosto que ele tinha quando ainda sonhava em devorá-lo.
Hoje, sou obrigado a viver encurvado desviando das fezes dos cachorros que empesteiam as ruas e dos olhares das pessoas que, com suas toneladas de pena, estranheza e escárnio pesadíssimas, querem me curvar ainda mais.
Talvez não devesse mais me erguer mesmo. Devia afundar-me no chão. Estirado. Imóvel. Livre desta carcaça que me acaramuja.
Pouparia você do trabalho de cuidar de mim e, principalmente, me livraria da tormenta de ouvi-la me chamar e não poder levantar e ir ao seu encontro. E olhá-la nos olhos como antes, com a certeza de que o horizonte estava a muitos metros abaixo de nós.