26.4.11

 

Pessoa do povo

(minipeça)


No restaurante, Ric chega com a nova noiva pra apresentar aos amigos. Espanto geral. Silêncio. Ela quase enfia a cara dentro da blusa velha e furada.

RIC ─ Esta é a Maria! (silêncio). Pessoal, Maria, Maria, pessoal.

Ouve-se um meio “oi”.

RIC ─ Disse que iam adorá-la, não é, Maria?

MARIA ─ ...

AMIGO 1 ─ Você trabalha em quê?

MARIA ─ ...

RIC ─ Limpeza.

AMIGA 2 ─ Se conheceram como?

RIC ─ Ela faz faxina pra mim.

Os amigos riem descontrolados.

AMIGO 2 ─ Muito boa essa!

RIC ─ É sério (silêncio constrangedor)

AMIGA 1 ─ FAXINA?

MARIA ─ ...

AMIGO 1 ─ Tá dizendo que ela tem mania de limpeza?

RIC ─ Não. Ela é faxineira mesmo.

Entreolham-se boquiabertos.

AMIGA 1 ─ (saindo) Desculpa. Vou buscar o Pedrinho no inglês.

AMIGA 2 ─ (saindo) E eu, a Ana.

AMIGO 2 ─ (saindo) Minha esposa tá esperando.

AMIGO 1 ─ (saindo) Vou com vocês.

Ric e ela ficam sós. Beijam-se apaixonados.

MARIA ─ Num gostaram de mim?

AMIGO 2 ─ (lá fora) Que que era aquela coisa, aquele negócio, aquela pessoa, digamos assim, do povo?


21.4.11

 

Minifato XX
(a realidade goleando a ficção)


Temendo a violência contra os moradores de rua, André Luís Rodrigues Augusto, 23, engraxate e catador de latas, decidiu viver no alto de uma figueira de dez metros, às margens da Radial Leste, no centro de São Paulo.
A casa tem colchão de molas, travesseiros, ursos de pelúcia, objetos de higiene, alimentos e uma tevê (que ainda não funciona).
Os vizinhos dele não reclamam da sua presença ali.
Um pipoqueiro que é seu amigo só se surpreende com a quantidade de mulheres que visitam André à noite: “Conheço pessoas que não conseguem trocar de mulher de maneira nenhuma, mas ele troca várias vezes. E tudo novinha e bonita”.


17.4.11

 

JAPÃO EM 5 TEMPOS

(Singela trilogia que engravidou e teve gêmeos)


V – Os que sobramos

Sobrevivemos?

Sobramos.

Sobramos?

Restamos dos restos, quedamos nas quedas, maremotiamos nas águas profundas do nada irradiado e plutonado que levou casas, coisas, seres, ar-esperança-tudo prum lugar-outro que agora é bem longe deste quase-nós-coisa-nenhuma (10.000) que já não éramos.

Pra que continuar só-sobrando aqui?

Pra remorrer de novo?

Pra que des-ser se nos descem a novas covas-minas-explosivas enquanto os mortos (11.000) reaumentam e realimentam-se de nós?

Pra provar que podemos?

O quê?

Pra que família se só estamos familiarizados com a tragédia que insiste em procriar?

Pra que tantas perguntas se esqueceram de repor as respostas?

Pra que exclamações (12.000) se nosso espanto espantou-se de si?

Um dia, se Dia novo houver e algo trans-sobrar, que ressuscite nossa história a outros que conheçam por que, nos olhando, hoje nos desconhecemos tanto assim.

(13.001)


10.4.11

 

IV - Comboio decasségui


A gente (nós?) nunca foi da sua rua, seu vizinho, não fala sua língua e tinha-tem (por enquanto) uma vida (7.411) bem diferente da sua.

A gente era brasileiro até chegar aqui e não parar de trabalhar e mandar dinheiro pro Brasil e trabalhar-trabalhar e ter saudade e trabalhar-trabalhar-trabalhar e querer comer só (?) um bifinho-feijão-arroz (cadê?) e achar que Tóquio tem a melhor feijoada do mundo (porque a saudade daí é a maior do mundo) e trabalhar-trabalhar e chorar ouvindo qualquer música do Brasil (até Ivete Sangalo) e não ter pátria e não ser nós (8.155) e sim outra coisa assim decasségui.

Essa vida miserável que a gente criticava, com tudo de ruim que tinha, com o pouco bom, mas muito bom que tinha, com os políticos que tem-sempre-terá, que quase acabou aqui, que era pouca-porém-nossa, sem terremotos e prédios caindo feito dois palitinhos no prato, essa vida que a gente quer de volta.

Voltar urgente-(9.322)-agora-já-demorou pra nossa terra, terra, terra-CHÃO!


5.4.11

 

III - Radiação


Tsunamiados na lama, restos do que foi arrastado, estávamos salvos em terra firme (?), salvo outra hecatombe.

Que pela lógica não haveria, pois já tínhamos atingido nossa cota de desgraça (5.127), porque não há tantas catástrofes diferentes assim na Terra (???) e porque ignorávamos o pior.

Invejoso das outras forças matadoras da natureza, o ar que tanto desejamos naquele maremoto de mortes nos contaminou de nós.

Da nossa imprudência, da falta de aprender com o passado e da impaciência de futuro.

Os “50 de Fuku(Hiro)shima”, digo, os agora 44, quase 39 heróis-suicidas de uma tragédia greco-nipônica anunciada, eram proclamados novos Davids lutando com um Golias 3 mil vezes maior que os níveis de razão-radiação normais.

Putos de plutônio, mal ouvíamos o governo falar da situação estar sob controle (estar no inferno é estar sob controle?), diante da população bradando por grãos de arroz nos mercados e com a radiação contaminando (6.256) a pouca água, comida e vida que sobraram.


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