26.9.06

 
A venda

Tudo o que passa diante dos meus olhos me cega.

Essa realidade que dizem que está aí pra mim não existe. Não foi essa a nação que sonhei.

No meu projeto, e tenho milhares deles, o Brasil é outro país. Bem diferente do que sai nos jornais e fica se repetindo dia após dia, escândalo após escândalo. Inventado, é claro.

Demorei muito pra chegar até aqui e não vou deixar que desmoronem as bases de tudo que construí com as bases do meu partido (mesmo rachado em mil facções). Tá tudo aí. Só não vê quem não quer.

Meus assessores, que me assessoram o tempo todo, são a melhor assessoria que pude montar com os ascensoristas de plantão. Não tenho culpa se todos me traem. Política é a arte das concessões. E pra conceber um Brasil sem sede, tenho que conceder tudo. Só não cedo minha sede aos que tardam a ver o óbvio.

EU tenho as mãos limpas, mesmo mexendo nessa coisa repugnante que a política é. E que ninguém discuta ética comigo. Minha consciência não está à venda. E nem a venda está em mim.

20.9.06

 
Cada um tem seu par


Quando se deu conta, viu que era a única pessoa sozinha no bar. Todos estavam com amigos, parentes, namorados, cônjuges, amantes e todos os tipos de relacionamento que ela nunca entendeu por qual mágica se formavam. Sentia que tinha uma espécie de ímã às avessas, que repelia as pessoas de si.

Já se perguntara se era seu cheiro. Sua voz. Sua aparência. Considerava-se normal. Simpática até. Mas algo nela a isolava dos outros.

Tal como agora em que ela, cansada de se sentir só no meio da multidão, pede a conta, mas vê o garçom saindo do bar sem trazer o troco. E vê que as pessoas vão saindo e a deixam (ainda mais) sozinha.

E põe-se a atravessar as ruas parando nos faróis desnecessariamente, pois os motoristas largam os carros nos cruzamentos e vão embora, e percebe que não há ninguém nas calçadas e que a avenida Paulista está deserta e desce a Consolação com uma vontade louca de entrar no cemitério, onde também não há ninguém, exceto um coveiro que a aguarda impaciente.

12.9.06

 
A incrível arte que eu não tenho de cantar junto uma canção que está tocando no rádio

Se tudo é tão “fácil, extremamente fácil, pra você e eu e todo mundo cantar junto”, por que a surpresa ao ouvir meu pai cantar escutando rádio? Por que nesta casa, onde quase nunca se canta, o nunca sou eu? Assobiar então nem pensar. Minha alma, se é que tenho uma, ainda vai demorar 20 encarnações pra atingir esse estágio de ânimo. “Tristeza não tem fim. Felicidade, sim”. Dançar é outra coisa que não consigo. Não entendo como as pessoas se remelexeiam cada vez que toca um axé, um forró ou um funk mais agitado. “Quer dançar? quer dançar? O tigrão vai te ensinar”. Música pra mim é só o fundo musical da minha tristeza. “Eu vivo procurando alguém. Que sofra como eu também. E não consigo achar ninguém”. Um fundo que não sobe à superfície dessas alegriazinhas supérfluas. E dane-se se 76% dos brasileiros dizem ser felizes. Essa pesquisa foi feita num país onde eu definitivamente não vivo. E não canto.

6.9.06

 
AplauS.O.S.
Aviso prévio pra todos os “amigos”. Aviso nos sites. Várias notas nos jornais e nenhuma nota no bolso. E mesmo assim meus vinte anos de carreira só conseguem atrair vinte pessoas.

Será que pra juntar cem terei de cantar mais 80 anos? Talvez só aí reconheçam a grande cantora que sou. Ou talvez só depois da minha morte.

E o pior é que esse povinho não entende lhufas de música. Tá aqui só pra ouvir a canção que por milagre puseram na novela da TV e hoje tá bombando nas rádios tanto quanto eu tô explodindo de ficar ouvindo essas bestas pedirem só essa música.

Como se meus três CDs, dois LPs (sim, sou velha) não valessem nada. Acho que se eu cantasse na “boquinha da garrafa” e rebolasse a bunda faria mais sucesso.

No final, aposto que além de não comprar o CD, ainda terão a coragem de me pedir autógrafo no papel mesmo.

─ Ãh? O quê? Ah, tá, aquela música... Querem saber? Fiquem aí com sua ignorância, que o único aplauso sincero que eu ouço é do cara que cobra meu aluguel atrasado.

 
Como cheguei até aqui

De manhã, dor de cabeça. Estômago empacotado. Gosto de vômito na língua. E na memória, nada.

Nenhuma lembrança do que aconteceu ontem depois do terceiro copo.

E devem ter acontecido muitas coisas. Pelo menos é o que os machucados na testa, no cotovelo e no joelho falam. O que revela a roupa banhada de um vômito azedo e de uma cor fora de moda. O que demonstra o sorriso irônico do porteiro (como se porteiro tivesse direito de ter sorriso irônico). E o que diz a carteira que antes estava cheia de dinheiro e agora é puro ar.

O mesmo ar que me falta depois que ela se foi. E que preenche os copos que eu deixo vazios ao tentar preencher o vazio da ausência dela aqui.

E agora, além de não lembrar como cheguei aqui, também não lembro por que saí.

Talvez tenha sido porque a lembrança dela ─ que ao contrário do que aconteceu ontem eu tento esquecer, mas não consigo ─ me dá a mesma vontade que eu estou começando a sentir de novo de sair e ir pro bar mais perto.

 
Órfão

Esse choro eu conheço. Já o chorei num tempo que, embora remoto, insiste em me vir à lembrança cada vez que essas faveladas deixam na porta esses monstrinhos vindos de um ventre de onde jamais deveriam ter saído; muito menos entrado.

Acham que meu coração (coração?) é do tamanho desta casa e que esse pirralho poderá se apossar de uma das seis suítes que estão tão desocupadas quanto a mente desses infelizes que primeiro pensam em gozar e só depois se lembram de que seu gozo semeia o desgosto de trazer à luz seres com um futuro tão apagado quanto o deles.

Mas não. Esse aí não vai ter a sorte que tive. Até porque eu também não pedi pra me pegarem. Não pedi pra me darem amor e carinho pra eu poder ser alguém na vida. Ainda que para isso tivesse de destruir vários no caminho.

Não. Vai ficar chorando na porta como todos os outros que morreram se esgoelando de chorar um choro tão intenso quanto a alegria que tenho ao saber que ninguém vai tirar ou mesmo pegar uma parte de tudo o que é meu.


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